Queiroz Bacelar

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O Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro e os Direitos Autorais

Ricardo Bacelar

Abstract - The study, done through the analysis of legislation and doctrine, outlines the parallels between the Brazilian Immaterial Cultural Patrimony and Authors’ Rights. It examined  whether or not the registration of the elementary expressions of article 216 of the Federal Constitution of 1988 will be obligatorily considered Immaterial Cultural Patrimony.  It observed that the Cultural Patrimony guards the reference to identity, action, and memory of the founding groups of Brazilian society, in the way that was established by the Constitution in vigor.  The objective of the monograph is to confirm that under these circumstances, there is exclusive authorial protection and the economic enjoyment of literary, artistic and scientific works inspired by traditional knowledge and, consequently, in the Immaterial Cultural Patrimony.  It verified that when there is the simple copy of signs and axioms relevant to ancestral knowledge from determined community, without original elements or creative novelty, being mere plagiarism, the exclusive protection of the supposed author does not apply and the right is conceded to the group from which the ancestral expression is divined.

 
Key Words: Immaterial Cultural Patrimony - Authors’ Rights – Intelectual Property– Cultural Rights

1      Introdução
 
O presente estudo destina-se a examinar os pontos de contato existentes entre o Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro e os Direitos Autorais no ordenamento jurídico brasileiro.
 
Temática com raro enfrentamento doutrinário enseja observação de nuances das normas de regência e paisagem dos institutos[1] assinalados.
 
Inicia-se com breve histórico dos direitos autorais, informações históricas e delimitação desses direitos ante ao gênero propriedade intelectual.
 
Adiante, examina-se a legislação aplicada aos direitos de autor, partindo da Constituição Federal de 1988, passando à Lei 9.610/98 e aos tratados internacionais.
 
Adentrando a seara do Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, no capítulo seguinte, examinam-se conceitos de doutrina e, novamente, busca-se esteio na Carta Magna, que norteia a diretriz do estudo.
 
Os instrumentos de proteção ao patrimônio imaterial são elencados, ressaltando particularidades das formas de registro e das salvaguardas, exemplificando os casos concretos operacionalizados pelo IPHAN.
 
O próximo reside em ponto principal: vislumbra as linhas gerais de interseção entre os direitos autorais e o patrimônio imaterial.
 
Inicialmente, discorre-se sobre as normas cogentes de proteção ao patrimônio imaterial, bem como a legislação internacional que trata sobre o tema.
 
Enfrenta-se, a seguir, a superposição das nuances do patrimônio imaterial enquanto bem coletivo em relação aos direitos autorais no que toca, principalmente, aos direitos de exclusividade.
 
Adiante, as normas que tratam de co-autoria e de autores desconhecidos são examinadas sob a égide da titularidade coletiva.
 
Por ser assunto relevante, não se pode deixar de destacar as características dos conhecimentos tradicionais, do folclore e do domínio público. Isso se faz em prol da sustentação dos axiomas sugeridos, que encontram esteio nos direitos autorais.
As considerações finais são produto do amadurecimento das questões levantadas em confronto com as normas de regência.
 
Busca-se ponto de equilíbrio entre a exclusividade concedida a determinado grupo do qual o conhecimento tradicional é proveniente e os direitos fundamentais da liberdade de expressão, os direitos culturais e o livre exercício do trabalho.
 
As anotações derradeiras residem nas formas de identificação do Patrimônio Cultural Imaterial, a proteção sob a ótica do direito do autor e o elemento da originalidade em comunhão com signos do conhecimento tradicional e da cultura popular.
 
Ressalte-se que o tema não oferece bibliografia específica, senão individualizada para cada instituto, restando ao autor do estudo enfrentar as questões de relevo com a paixão que o advogado especializado em direitos autorais nutre no caminhar de sua carreira.
 
A propriedade intangível, no que toca as artes e as ciências, é fruto do espírito humano, podendo ser parte de processos de acumulação ancestral e coletiva. Quando construída com elementos originais e constituída de signos provenientes da alma de que os criou, ensejam o reconhecimento legal e a exclusividade.
 
O presente trabalho foi concebido com paixão e respeito próprio à criação, à invenção, à idéia, ao pensamento, à inspiração, ao conhecimento, às tradições, à ancestralidade, à cultura e ao direito.
 
 
O direito autoral regulamenta as disposições relacionadas com as obras literárias, artísticas e científicas. É espécie do gênero propriedade intelectual, do qual fazem parte os direitos relacionados às marcas e patentes, programas de computador, direitos autorais e demais institutos.  
 
A propriedade intelectual, na tradução de Denis Borges Barbosa (2003, p. 1) sobre definição da Organização Mundial da Propriedade intelectual:
 
É a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões da radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.
 
Importa, inicialmente, pincelar breve paisagem histórica do direito autoral para investigar sua natureza.
 
A antiguidade desconhecia os direitos autorais. O direito romano reconhecia apenas o direito do possuidor do mármore, sendo mero acessório o trabalho de criação do artista.
O reconhecimento destes direitos ocorreu pouco após a difusão da imprensa, momento em que a reprodução das obras se fez com mais facilidade. A divulgação e venda de exemplares tornou-se negócio lucrativo.
 
A reivindicação da proteção jurídica não partiu dos autores, mas dos editores, que empreendiam o trabalho de impressão e divulgação das obras.  Coube à Inglaterra o reconhecimento inicial dos direitos autorais em 10 de abril de 1710, através de legislação própria, outorgada pela da Rainha Ana.
 
Essa norma introduziu o copyright, o direito de autor, o direito de cópia e reprodução. Conforme a norma de então, somente com expressa autorização do autor os editores poderiam comercializar as obras. Mérito, portanto, do direito inglês ao realizar, no século XVIII, grande reforma legislativa, que no direito continental europeu se introduziu e se difundiu com a Revolução Francesa.
 
O caráter de propriedade veio logo após, em 1793, na França, onde foram editadas leis que o consolidaram como direito inalienável do autor.
 
Essa nova tendência universal encontrou na França o movimento pelo reconhecimento dos direitos autorais. Atingiu plena maturidade na Revolução Francesa.
 
O Brasil reporta-se à Lei de 11 de agosto de 1827, que concedeu aos professores dos cursos jurídicos os direitos sobre as obras didáticas que preparassem. O Código Criminal de 1830 reconheceu o direito de autor, estabelecendo que os herdeiros o teriam por 10 anos depois da morte do titular. A Constituição Federal de 1892, em seu art. 72, §26, reconheceu em toda sua amplitude tal direito.
 
Há entendimentos doutrinários que consideram o direito de autor um direito de personalidade, outros defendem que é um direito patrimonial, e uma terceira corrente concebe-o como direito misto, sui generis. Isso se dá porque o direito autoral carrega em seu bojo duas dimensões de direitos distintos: o direito moral e o direito patrimonial.
 
Muitos autores difundiram a patrimonialidade dos direitos de autor, entre eles Ihering, o mais ferrenho defensor da propriedade intelectual, e Köhler, cujas idéias exerceram larga influência na doutrina jurídica brasileira, através da obra de Clóvis Beviláqua, que reconheceu o aspecto patrimonial do direito autoral.
 
Examinado, neste item, o contexto histórico de quando nasceram os direitos autorais e as noções preliminares, anotam-se, a seguir, tópicos relevantes sobre a legislação que rege a matéria.
 
Dentro das prescrições legais dos direitos de autor na legislação brasileira, partindo da Constituição Federal, examina-se: nos Direitos e Garantias Individuais, no art. 5o, XXII, o direito de propriedade; no inciso IX, a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura e de licença; no inc.XIII, o livre exercício de qualquer trabalho; no inc. XXVII: "Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas pertence todo o direito de utilizá-las.”, e no inc. XXVIII, b, o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras criadas.
 
O antigo Código Civil, em seu art. 48, III, determinava aos direitos autorais, para efeitos legais, características de bens móveis, previsão albergada pela Lei 9.610/98. O Código disciplinava a matéria, anteriormente, nos arts. 649 a 673. Hoje a legislação de regência é o novo Código Civil, de 2002, consoante ao estabelecido nas Leis de nos 9.610/98, 6.533/78, 6.615/78 e 5.988/73.
 
O Código Penal Brasileiro prevê, nos itens dos crimes contra o patrimônio, prescrições decorrentes das confrações (violação aos direitos de autor) com penas variadas de acordo com a conduta.
 
As principais convenções internacionais aplicáveis são: a Convenção de Berna, Paris, 1971, relativa à proteção das obras literárias e artísticas; Convenção Universal sobre Direito de Autor, Paris, 1971; Convenção Interamericana sobre os Direitos de Autor em Obras literárias, Científicas e Artísticas, Washington, 1946; Convenção Internacional para a Proteção aos Artistas Intérpretes ou Executantes, aos Produtores de Fonogramas e aos Organismos de Radiodifusão, Roma 1961, a Convenção para a proteção de Produtores de Fonogramas contra a reprodução não autorizada de seus Fonogramas, Genebra, 1971 e o TRIP´s - Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, 1994 - Organização Mundial do Comércio.
 
A Lei no 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos Direitos Autorais, foi editada de forma didática e trata da matéria objetivamente, embora desatualizada em virtude da revolução tecnológica, uso de internet, mídias digitais e outros conflitos da era contemporânea.
 
Sobre as obras intelectuais, o art. 7o da lei dos direitos autorais enuncia: "São obras intelectuais protegidas as criações do espírito [...]"; em seu art. 11: "Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica"; em seu art. 22: "Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou" e em seu art. 28: "Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica".
 
Estes direitos têm característica incomum. A comunhão no mesmo direito de uma parcela de direitos de personalidade (direitos morais) e outra de direito patrimonial.
Os direitos morais do autor são inseparáveis, perpétuos, inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis, uma vez que são extensões da própria personalidade.
 
São direitos morais, de acordo com a legislação em exame:
 
Art. 24 [...] I - reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II - ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; III - conservar a obra inédita; IV - assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; V - modificar a obra, antes ou depois de utilizada; VI - retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;  VII - o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.
 
Os direitos patrimoniais dizem respeito ao aproveitamento econômico das obras e suas diversas formas de utilização. Exemplificando, uma música gravada (fonograma[2]) pode ser reproduzida para comercialização em CD, DVD, na internet, utilizada como trilha para cinema, veiculada como jingle no rádio, como toque de celular, impressa em partitura para venda, a letra pode ilustrar uma camiseta e outros. São muitas as formas de utilização previstas na legislação de regência.
 
Os direitos autorais patrimoniais podem ser cedidos ou licenciados através de contratos escritos para terceiros e são transferidos aos sucessores pelo prazo de 70 anos contados após a morte do autor. Após o prazo legal, a obra cai em domínio público, nos termos da lei 9.610/98.
 
Um ponto importante relacionado aos direitos autorais é que antes da utilização de qualquer obra, necessita-se de autorização prévia e expressa do autor, regulamentando o prazo, o preço e de que forma a obra vai ser utilizada.
 
São estas as modalidades de utilização previstas pelo artigo 29 da Lei 9.610/98, independente do suporte:
 
 Art. 29 [...] I - a reprodução parcial ou integral; II - a edição; III - a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações; IV - a tradução para qualquer idioma; V - a inclusão em fonograma ou produção audiovisual; VI - a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra; VII - a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário; VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante: a) representação, recitação ou declamação; b) execução musical; c) emprego de alto-falante ou de sistemas análogos; d) radiodifusão sonora ou televisiva; e) captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva; f) sonorização ambiental; g) a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado; h) emprego de satélites artificiais; i) emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados; j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas; IX - a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero; X - quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas[3].
 
Cada forma de expressão: cinema, artes plásticas, fotografia, música, teatro e outros têm especificidades próprias que fazem do direito autoral um ramo de atuação para quem tem a vivência prática no mundo das artes e na indústria do entretenimento.
 
A interpretação aplicada aos negócios jurídicos realizados sob a égide da lei dos direitos autorais é restritiva por determinação legal. Isso se dá, historicamente, pelo fato de os artistas, muitos deles sonhadores, serem enganados por empresários que os faziam assinar papéis em branco e outras trapaças, visando-lhes tirar indevido proveito.
 
Os contratos relacionados a esses direitos presumem-se onerosos e os pactos sobre obras futuras têm prazo máximo de cinco anos, impedindo, assim, que o autor possa ser ludibriado ao ceder os direitos sobre obras que ainda não criou.
 
Não são objeto de proteção como direitos autorais conforme a lei 9.610/98:
 
Art. 8º [...] I - as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais; II - os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; III - os formulários em branco para serem preenchidos por qualquer tipo de informação, científica ou não, e suas instruções; IV - os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais; V - as informações de uso comum tais como calendários, agendas, cadastros ou legendas; VI - os nomes e títulos isolados; VII - o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras.
 
Apesar de haver regramento específico que regula a matéria, há uma cultura que favorece o desrespeito destes direitos. Veja-se que o Brasil é o terceiro país do mundo em pirataria de CD e recebeu advertências da Organização Mundial do Comércio sobre os elevados índices de confração[4].
 
A legislação merece uma reforma urgente para atualizar as prescrições às novas tecnologias advindas do advento da informática. Os países desenvolvidos já regulam estes direitos adequando-os às novas mídias, arquivos digitais, internet e outros assuntos de relevo.
 
No presente capítulo, após as noções introdutórias, foram apontados aspectos relevantes das normas legais pátrias que disciplinam os direitos autorais. Adiante, discorre-se sobre o patrimônio cultural imaterial brasileiro e suas formas de proteção.
 
 
A expressão “patrimônio” está relacionada com o sagrado, com a herança, legado e memória. Para o direito, o patrimônio faz parte do universo das coisas, dos bens tangíveis ou intangíveis, dos direitos reais sobre a propriedade e institutos correlatos.
 
O patrimônio cultural (em inglês heritage, e em espanhol herencia), enquanto bem coletivo e comum a determinado grupo, tradutor de determinada identidade, foi reconhecido inicialmente no final do século XVII.
 
O patrimônio imaterial é encontrado nos fazeres, nas canções, conhecimentos tradicionais, saberes, folclore, cultura popular, na língua, nos costumes e outras formas de manifestação humana transmitidas ancestralmente para as gerações vindouras de forma escrita, oral ou por qualquer outra forma.
 
Sobre a relação do direito com a cultura, colacionamos o conceito de Francisco Humberto Cunha Filho (2004, p. 49):
 
A cultura para o mundo jurídico é a produção humana juridicamente protegida, relacionada às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, e vinculada ao ideal de aprimoramento, visando à dignidade da espécie como um todo, e de cada um dos indivíduos.
 
A expressão “Patrimônio Cultural”, utilizada na Carta Política de 1988, é forma mais abrangente e completa do que Patrimônio Histórico e Artístico, antiga denominação (SILVA, 2001, p. 100). Essa concepção mais robusta compreende todas as expressões simbólicas da memória coletiva, constitutivas da identidade de um lugar, uma região ou uma comunidade (CAMPELLO APUD SILVA, 2001).
 
O termo “brasileiro” insculpido na Constituição Federal, no art. 216, sugere forma conjunta dos três entes da Federação, União, Estados e Municípios:
 
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
 
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
 
Os bens protegidos são aqueles portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Na lição de José Afonso da Silva (2001, p. 114):
 
[...] bens portadores de referência são bens dotados de um valor de destaque que serve para definir a essência do objeto de relação ao qual se prende o princípio de referibilidade considerado. É que, no caso, referência é, também, um signo de relação entre os bens culturais, como antecedentes ou referentes, e a identidade, a ação, e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como conseqüentes ou referidos.
 
A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que faz parte do ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto Legislativo nº 22 de 1º de fevereiro de 2006, explicita:
 
Artigo 2 [...] Entende-se por "patrimônio cultural imaterial" as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
 
O instituto em estudo é transmitido por gerações, e recriado pelas comunidades e grupos sociais, permeando o sentimento de pertença e identidade, estabelecendo a diversidade cultural e o pluralismo.
 
O objeto de estudo é direito fundamental difuso com referibilidade à identidade e à história de determinado grupo social, traduzido por manifestações fluidas relacionadas com o fazer, criar e saber, materializados ou não, em patrimônio tangível (suporte) que as identifica.
 
A ação do Poder Público na implementação de políticas publicas de proteção e difusão da cultura nacional é ferramenta indispensável para a solidificação de valores relacionados às formas de identificação.
 
O patrimônio cultural imaterial constitui-se das tradições e expressões orais, incluído o idioma, as expressões artísticas, as práticas sociais, rituais, atos festivos, conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo e as técnicas artesanais tradicionais.
 
Sobre a categoria expressões artísticas relacionadas com o patrimônio imaterial, especifica-se algumas elencadas na lei de direitos autorais, lei 9.610/98, no art. 7º, como criações do espírito:
 
Os textos de obras literárias, artísticas ou científicas, as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza, as obras dramáticas e dramático-musicais, as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma, as composições musicais, tenham ou não letra, as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas, as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia, as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética, as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza, os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência, as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova.
 
Examinadas as noções jurídicas introdutórias sobre o patrimônio cultural imaterial brasileiro, aponta-se, a seguir, os instrumentos de proteção e políticas públicas relevantes.
 
 
A Constituição Federal de 1988, no art. 216, §1º, instituiu formas de proteção ao patrimônio cultural, dentre elas, os inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação.
 
Vê-se o fruto histórico da política pública materializado na norma constitucional, regramento de matiz abrangente e principiológico, norteador das ações do poder público no que tange à preservação dos elementos constitutivos da identidade brasileira.
 
O inventário de bens imateriais compreende ações dirigidas ao levantamento, à pesquisa, à documentação e à interpretação de dados, para fins de operacionalização de políticas públicas, estudos acadêmicos e planejamento de ações pontuais voltadas à preservação.
 
O Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC – é metodologia de pesquisa desenvolvida pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e objetiva produzir informações sobre elementos da vida social que carregam em seu bojo elementos da identidade nacional.
 
O proponente deverá encaminhar ao órgão ofício de solicitação, o projeto de pesquisa e firmar o termo de responsabilidade para o uso da metodologia do INRC. O projeto deverá contemplar recursos para viabilizar treinamento da equipe que desenvolverá a pesquisa.
Dentre os inventários oficiais realizados utilizando a metodologia do IPHAN destaca-se: o Círio de Nossa Sra. de Nazaré – Belém/PA, o Ofício das Baianas de Acarajé – Salvador/BA, a Viola de Cocho - MS/MT, o Jongo - RJ/SP, a Cerâmica Candeal/ MG, o Bumba-Meu-Boi/MA e o Museu Aberto do Descobrimento/BA.
 
Outra importante política pública no campo da preservação do patrimônio cultural imaterial denomina-se Salvaguarda.
 
Destina-se a apoiar a continuidade de uma expressão imaterial de modo sustentável, contribuindo, através do poder público ou por um particular, na melhoria das condições de transmissão do fazer e reprodução do conhecimento para possibilitar sua existência e continuidade.
 
As formas adequadas de salvaguarda são identificadas através dos processos de inventário, indo desde ajuda financeira à facilitação de acesso a matérias primas.
 
O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial do IPHAN já realizou os seguintes Planos de Salvaguarda: Arte Kusiwa – Pintura corporal e Arte gráfica Wajãpi, Samba de Roda do Recôncavo baiano, Oficio das Paneleiras de Goiabeiras e Viola-de-Cocho.
 
Visando regular as ações mais específicas voltadas à proteção do patrimônio imaterial, foi editado o Decreto Nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.
 
Essa legislação regulamenta as formas de registro em livros específicos: o Livro de Registro dos Saberes, onde são inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro das Celebrações, onde são inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; o Livro de Registro das Formas de Expressão, onde são inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas e o Livro de Registro dos Lugares.
 
São partes legítimas para provocar a instauração do processo de registro, o Ministro de Estado da Cultura, instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal, sociedades ou associações civis.
 
Os processos de registro são enviados ao presidente do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e encaminhados ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que após deliberação, eleva o bem ao status de Patrimônio Cultural do Brasil, reavaliado a cada 10 (dez) anos.
 
Na forma do decreto, a instrução constará de descrição pormenorizada do bem a ser registrado, acompanhada da documentação correspondente, e deverá mencionar todos os elementos que lhe sejam culturalmente relevantes.
 
Dentre as exigências mínimas previstas pelo Decreto Nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 e pela Resolução no 1, de 3 de agosto de 2006, do IPHAN, estão:
 
A denominação e descrição sumária do bem proposto para registro, com indicação da participação e/ou atuação dos grupos sociais envolvidos, de onde ocorre ou se situa, do período e da forma em que ocorre; informações históricas básicas sobre o bem; documentação mínima disponível, adequada à natureza do bem, tais como fotografias, desenhos, vídeos, gravações sonoras ou filmes; referências documentais e bibliográficas disponíveis.
 
São, ainda, exigências para o registro, de acordo com a Resolução no 1/2006 do IPHAN:
 A declaração formal de representante da comunidade produtora do bem ou de seus membros, expressando o interesse e anuência com a instauração do processo de Registro; descrição pormenorizada do bem que possibilite a apreensão de sua complexidade e contemple a identificação de atores e significados atribuídos ao bem; processos de produção, circulação e consumo; contexto cultural específico e outras informações pertinentes; referências à formação e continuidade histórica do bem, assim como às transformações ocorridas ao longo do tempo; referências bibliográficas e documentais pertinentes; produção de registros audiovisuais de caráter etnográfico que contemplem os aspectos culturalmente relevantes do bem; reunião de publicações, registros audiovisuais existentes, materiais informativos em diferentes mídias e outros produtos que complementem a instrução e ampliem o conhecimento sobre o bem; avaliação das condições em que o bem se encontra, com descrição e análise de riscos potenciais e efetivos à sua continuidade; proposição de ações para a salvaguarda do bem.
 
Dentre outros bens de natureza imaterial já foram registrados: Jongo no Sudeste, Pau da Bandeira de Santo Antônio de Cariri – Ceará, Cachoeira de Iauaretê – lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri, Feira de Caruaru, Frevo, Tambor de Crioula do Maranhão e o Samba do Rio de Janeiro.
 
O registro desempenha função de relevo nas políticas de preservação e perpetuidade da memória. Como programa de fomento oportuniza o acesso e a transmissão do conhecimento com ações de estímulo e transmissão de saberes.
 
Questão de relevo é identificar se os bens que guardam referência à identidade, à ação ou à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira somente são considerados como patrimônio cultural imaterial se forem formalmente inscritos nos livros de que trata o Decreto Nº 3.551, de 4 de agosto de 2000.
 
O art. 216 da CF/1988 é norma auto-aplicável, e não condiciona a edição de lei complementar para que sua eficácia[5] seja plena e de imediata aplicação.
 
Partindo dessa simples premissa do direito constitucional constata-se, em relação à formalidade dos bens intangíveis enquanto tradutores dos valores afeitos à simbologia e ao imaginário, que a referibilidade de que trata a Carta Política é que dá ao bem imaterial a condição de patrimônio cultural.
 
O trâmite previsto pelo decreto é forma de política pública que visa efetiva proteção e levantamento de dados sobre as manifestações, além dos aspectos relacionados às informações para salvaguardas, formas de preservação e de transmissão de conhecimento.
 
A Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, determina que o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético integra o Patrimônio Cultural Brasileiro:
 
Art. 8o, § 2o  O conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de que trata esta Medida Provisória integra o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto de cadastro, conforme dispuser o Conselho de Gestão ou legislação específica.
 
Com a mera interpretação literal[6] do texto legal vê-se que o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético integra o patrimônio cultural e poderá ser objeto de cadastro. O texto não determina que deverá ser objeto de cadastro.
 
A Constituição Federal, em seu parágrafo primeiro do artigo 216, explicita:
 
O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
 
A norma constitucional prevê que o poder público, com a cooperação dos particulares, promoverá e protegerá o patrimônio cultural através dos registros, inventários e outras formas de acautelamento. O regramento não prevê que o poder público instituirá, elegerá, ou formalizará, através de registro, o patrimônio cultural.
 
Isso não se faz porque o Patrimônio Cultural o é per si. É assim considerado porque guarda a referibilidade que a Carta Política determina, sem necessidade de homologação.
 
Quando a expressão cultural traz em si o axioma indelével da referência aos valores de pertença e de identidade dos grupos que compõem o universo da sociedade brasileira, integra o rol das manifestações imateriais consideradas como patrimônio cultural.
 
O raciocínio contrário contrapõe-se à máxima dos princípios dos direitos culturais que tratam da preservação e do pluralismo como normas de caráter genérico, abstrato e de longo alcance, com natureza principiológica.
 
Afirma-se, também, no mesmo sentido, que um mero decreto, mesmo que constasse a obrigatoriedade do registro, o que não ocorre de fato, sendo mera ilustração aqui trazida, não tem o condão de sufragar a força da norma constitucional auto-aplicável, advinda de um processo legislativo específico e qualificado, determinante para o equilíbrio da ordem jurídica.
 
Por estas razões, defende-se, de forma contundente, que todos os bens que guardam esta referência de que trata a Carta Capital são integrantes do Patrimônio Cultural imaterial Brasileiro.
 
Quanto ao Patrimônio Cultural Material, anote-se que os procedimentos administrativos de tombamento de bens móveis ou imóveis devem ser precedidos do devido processo legal.
 
Isso se faz porque há limitação no direito de propriedade do particular, que é possuidor do bem, e a constrição somente poderá ser efetuada mediante o due process e as garantias constitucionais da ampla defesa e de outros direitos fundamentais.
 
Além disso, há o princípio da legalidade que deverá ser respeitado. Existe regramento específico que prevê o tombamento nas três esferas da federação: União, Estados e Municípios, como processo administrativo que pode resultar em limitação de direitos de terceiros, instituição de obrigações e ônus de natureza jurídica.
 
Sendo assim, não se aplica a mesma tese observada no Patrimônio Cultural Imaterial, pois o direito de propriedade sobre o bem cultural intangível tem natureza difusa e coletiva.
 
Após paisagem sobre os principais aspectos jurídicos do patrimônio imaterial, sua conceituação e exposição dos instrumentos de proteção, discorre-se, no capítulo seguinte, sobre a interseção entre o patrimônio imaterial e os direitos autorais.
 
 
Busca-se, neste capítulo, encontrar os pontos de contato entre o patrimônio cultural imaterial brasileiro e os direitos autorais.
 
Inicia-se com rápido exame de normas legais importantes para a delimitação da investigação, passando à análise do reflexo da propriedade imaterial cultural, enquanto bem coletivo, em relação aos direitos autorais.
 
Adiante, vislumbram-se os aspectos relevantes da sobreposição dos tópicos distintos, passando ao estudo do domínio público, folclore e conhecimentos tradicionais.
 
 
Normas cogentes nacionais protegem os signos que integram o Patrimônio Cultural Brasileiro, sejam eles de natureza material ou imaterial, patrimonial[7] ou moral[8].
O texto constitucional vigente prescreve regramento específico sobre a proteção do Patrimônio Cultural nos arts. 5º, LXXIII; 23, II, IV e V; 215, §§1º e 3º e 216, §§1º e 4º:
 
Art. 5º, LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; [...]Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; [...] Art. 215, § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; Art. 216, §1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. [...]§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
 
As diretrizes constitucionais e legais de proteção são explícitas, instituem a ação popular, determinam competências, elegem políticas públicas para o Plano Nacional de Cultura e elencam espécies de processos administrativos a serem utilizados como formas de acautelamento e preservação. A Lei da Ação Popular, 4.717/65, em seu art. 1º, § 1º determina: Consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.
 
Os registros do patrimônio imaterial são efetivados em livros específicos, na forma do Decreto Federal Nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 e através de produção normativa dos estados e municípios[9] face à competência legislativa constitucional (CF. art. 24, VII, VIII, IX)[10] e, em caráter suplementar, com a competência funcional dos municípios (CF. art. 30, IX)[11].
 
O Decreto Federal Nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 determina:
 
[...] Art. 3o As propostas para registro, acompanhadas de sua documentação técnica, serão dirigidas ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, que as submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
 
O tombamento é regulamentado, na esfera federal, pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Na lição de Manoela Queiroz Bacelar (2001, p. 14-15):
 
É procedimento administrativo garantidor de exercício de direito fundamental cultural, ao cabo do qual a Administração Pública inscreve determinado bem material ou conjunto de bens materiais, móveis ou imóveis, públicos ou particulares, em Livros do Tombo conforme natureza e essência, em função de sua forte referência à cultura brasileira, submetendo-o a regime jurídico especial para protegê-lo ou preservá-lo.
 
As marcas notórias relacionadas ao Patrimônio Cultural, as patentes, os modelos de utilidade, a transferência de tecnologia, a indicação de procedência, a denominação de origem e demais espécies são regulados pela Lei do Direito Industrial, 9.279/96. Os direitos autorais são regidos pela Lei 9.610/98, já examinada.
 
Já o procedimento específico de proteção do patrimônio arqueológico é feito na forma da Lei 3.924/61. Vejamos a legislação de regência:
 
Art. 2º Consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos: a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem testemunhos da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis, montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significado idêntico, a juízo da autoridade competente; b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha; c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeiamento, "estações" e "cerâmios", nos quais se encontrem vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico; d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros vestígios de atividade de paleoameríndios.
 
Na Organização Mundial do Comércio foi celebrado o acordo TRIP`s, Trade Related Aspects on Intellectual Property Rights, que regula a propriedade intelectual. O Brasil é signatário dessa convenção mediante o Decreto 1.355/94. O acordo TRIP`s, em seu artigo 15.2, determina que todos os membros devem obedecer às prescrições da Convenção de Paris.
 
Em relação à proteção específica dos conhecimentos tradicionais, o TRIP´s ainda não alberga regramento que vise, de forma mais objetiva, regular os direitos das comunidades tradicionais e a propriedade intelectual coletiva relacionada com patrimônio artístico, histórico, cultural e científico.
 
O Brasil é signatário de outra importante Convenção que trata sobre a Diversidade Biológica, assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em junho de 1992, ratificada pelo Decreto Legislativo n° 2, de 1994, que inspirou o projeto de Lei 306 de 1995. A norma, ainda em trâmite, disciplinará, além de outros temas, a proteção da propriedade intelectual das comunidades locais:
 
Art. 17 - Parágrafo Único - A proteção dos conhecimentos, inovações e práticas desenvolvidas mediante processos cumulativos de conservação e melhoramento da Biodiversidade, nos quais não é possível identificar um indivíduo responsável diretamente por sua geração, obedecerá regras específicas para os direitos coletivos de propriedade intelectual.
 
Art. 18 - Os direitos coletivos de propriedade intelectual constituem o reconhecimento de direitos adquiridos ancestralmente, englobando direitos de propriedade intelectual, direitos de autor, direitos de melhorista, segredo e outros.
 
Essa regra permitirá que as comunidades locais beneficiem-se, coletivamente, de suas tradições e da conservação dos recursos biológicos mediante direitos de propriedade intelectual.
 
O Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006, promulga a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em Paris, em 17 de outubro de 2003, que trata sobre o Patrimônio Cultural Imaterial e salvaguardas para direitos de propriedade intelectual:
 
Art. 2. O "patrimônio cultural imaterial", conforme definido no parágrafo 1 acima, se manifesta em particular nos seguintes campos: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais. [...] Art. 3. Nenhuma disposição da presente Convenção poderá ser interpretada de tal maneira que: [...] b) afete os direitos e obrigações dos Estados Partes em virtude de outros instrumentos internacionais relativos aos direitos de propriedade intelectual [...].
 
O tema ainda carece de legislação específica e políticas públicas mais direcionadas à proteção dos direitos de propriedade intelectual do patrimônio cultural imaterial brasileiro.
Ao exame das normas legais cogentes que albergam o patrimônio imaterial e os direitos de propriedade intelectual, aprofunda-se, a seguir, a superposição com os direitos autorais enquanto obras protegidas.
 
 
O propósito maior deste estudo é verificar, sob a ótica jurídica, o entrelaçamento do patrimônio cultural imaterial brasileiro com os direitos autorais. Já identificados no decorrer do estudo as nuances doutrinárias, passa-se a examinar os aspectos relacionados com a exclusividade.
 
Inicialmente, como já exposto, observam-se na Carta Capital, em seu art. 216, os elementos considerados pelo legislador constitucional como sendo o rol do patrimônio cultural brasileiro: as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
 
Resta investigar como tais elementos têm correspondência com a propriedade imaterial e ensejam proteção autoral na forma da lei.
 
Primeiramente, pontua-se que um determinado gênero de expressão artística, como por exemplo, o Samba de Roda do Recôncavo baiano, salvaguardado pelo IPHAN, tem titularidade coletiva.
 
Há normas internacionais que protegem a propriedade intelectual dos conhecimentos tradicionais de determinado grupo, com a titularidade coletiva, como veremos a seguir.
De outro lado, qualquer autor de uma composição musical que tenha características do samba de roda do recôncavo baiano, mas que traga elementos distintivos de originalidade[12], tem o seu direito individual protegido pela lei de direitos autorais.
Interpretando a legislação, se o elemento do patrimônio cultural for considerado como conhecimento tradicional, somente as pessoas que fazem parte daquela comunidade onde o conhecimento foi gerado ancestralmente poderiam, em tese, utilizar aquele conhecimento sob a forma de aproveitamento econômico.
 
Por outra ótica, a Constituição Federal de 1988 permite a todos o livre exercício de qualquer trabalho, garante a liberdade de expressão, os direitos culturais e os direitos individuais e coletivos de proteção aos direitos autorais (art. 5º, CF).
 
Então, surge a dicotomia entre a propriedade coletiva restringida pelo perímetro da comunidade na utilização econômica dos conhecimentos tradicionais, considerados como patrimônio cultural imaterial, e a segunda idéia que defende a plena liberdade de expressão e do exercício do trabalho.
 
Eliane Abrão (2007, p. 165) defende a forma de exploração comercial do patrimônio imaterial das comunidades, no tocante aos direitos autorais:
 
[...] esse patrimônio imaterial só pode ser explorado comercialmente, pelas populações e comunidades que o construíram, independentemente de eventual proteção autoral a obras individualmente consideradas desde que não sejam reproduções idênticas do já consagrado pela tradição gráfica ou oral.
 
Seguindo o raciocínio da professora Eliane, há a eventual proteção autoral a obras individualmente consideradas desde que não sejam reproduções idênticas.
 
A idéia é coerente. Algumas manifestações artísticas são tão originais e inconfundíveis que algumas incursões individuais não poderiam ser consideradas como uma nova obra.
 
Por outro lado, novas composições com elementos do samba-de-roda do recôncavo baiano, por exemplo, que tragam similitudes rítmicas, harmônicas, literárias, instrumentais ou de arranjos musicais com o gênero, mas que sejam consideradas criações do espírito (art. 7º da Lei 9.610/98), com originalidade relacionada à extensão da personalidade de seu autor, merecem proteção.
 
Os meros plágios[13] que tentam retratar as canções ancestrais já existentes, em que não se identifica a criação do novo autor, não devem ser protegidos.
 
Sendo assim, a exclusividade individual concedida a uma obra original não pode ser outorgada à manifestação que não traz qualquer elemento de criação, somente colagens de signos da cultura popular, cópias do conhecimento tradicional.
 
As criações literárias, artísticas e científicas advêm do espírito humano. Uma obra nasce através de uma série de processos mentais de reflexão, inspiração, emoção, análise crítica, estudo, experimentação e componentes muito íntimos do comportamento.
 
O direito concede a proteção individual a tal obra, criada pelo espírito, por ser considerada como trabalho intelectual, como fruto de labor, relacionado ao exercício de um fazer.
 
Os gêneros musicais que pertencem ao imaginário popular cujos autores não são identificados, são indicados, legalmente, como obras anônimas (art. 5º, VIII, b) da Lei 9.610/98.
 
As obras anônimas não pertencem, em regra, ao domínio público. Há a hipótese de o autor, por sua vontade, não ser indicado como tal, conforme a norma vista acima.
 
A lei de direitos autorais dispõe sobre o domínio público e as obras de autores desconhecidos, ressalvando a proteção aos conhecimentos étnicos e tradicionais, senão vejamos:
 
Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:
 
I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;
II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.
 
O regime de co-autoria também é disciplinado pela norma autoral, impedindo àqueles que simplesmente atualizarem, revirem ou dirigirem sua edição sejam considerados como autores das obras, que no caso poderiam ser obras pertencentes ao domínio público e/ou considerados como patrimônio cultural:
 
Art. 15. A co-autoria da obra é atribuída àqueles em cujo nome, pseudônimo ou sinal convencional for utilizada.
 
§ 1º Não se considera co-autor quem simplesmente auxiliou o autor na produção da obra literária, artística ou científica, revendo-a, atualizando-a, bem como fiscalizando ou dirigindo sua edição ou apresentação por qualquer meio.
 
Na seara do domínio público, como visto no artigo da legislação de regência, há a permissão para anotar, comentar ou melhorar sem a permissão do autor. Isso não significa, de forma alguma, co-autoria ou similitudes, como se vê:
 
Art. 33. Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor.
 
Parágrafo único. Os comentários ou anotações poderão ser publicados separadamente.
O entrelaçamento dos direitos autorais com o patrimônio cultural imaterial é distinto. Quando o autor cria com originalidade e utiliza elementos do imaginário popular há proteção autoral. Por outro lado, quando ocorre mera reprodução de elementos do patrimônio cultural, ainda que pertencentes ao domínio público, não há a proteção e a exclusividade conferidas como autor. O não reconhecimento legal estende-se aos direitos morais e às formas de aproveitamento econômico.
 
Enfrentados esses momentos, relacionados com a forma genérica da obra literária, artística e científica enquanto patrimônio cultural imaterial, passemos à análise dos conhecimentos tradicionais, do folclore e de elementos do domínio público.
 
 
Manoel Pereira dos Santos, citado por Denis Borges Barbosa (2007), defende que a liberdade do uso das obras intelectuais caídas em domínio público é referencial filosófico da propriedade intelectual.
 
A categoria domínio público, para a maioria da doutrina, importa em obras literárias, artísticas ou científicas cujos prazos de proteção legal já expiraram[14] e/ou que não lhes caiba nenhum titular, na forma da lei.
 
Quando uma determinada obra protegida pela Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) for considerada de domínio público, mesmo podendo ser utilizada por todos, de forma não exclusiva, não significa que pertença, necessariamente, ao Patrimônio Cultural.
 
Como já examinado, a Constituição Federal vigente indica o requisito de referência à identidade, à ação e à memória, para que o bem seja considerado patrimônio cultural.
 
A Lei de Direitos autorais enuncia, em seu art. 45, que ao domínio público pertencem as obras: II – [...] de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.
 
Esta ressalva legal, com imprecisão técnica, faz referência ao folclore e ao patrimônio cultural. A interpretação literal conduz à assertiva de que os conhecimentos étnicos e tradicionais sob proteção legal não pertenceriam ao domínio público.
 
O art. 24, §2º, da Lei 9.610/98 confere ao Estado a prerrogativa para defesa da autoria e da integridade das obras caídas em domínio público, além das competências previstas pela Carta Magna, art. 23, III e IV.
 
Na espécie, o Ministério Público tem legitimidade para atuar, na forma da Lei dos Direitos Difusos A competência estende-se à União, Estados e Municípios para defesa de danos a bens e direitos de valor estético e artístico.
 
A Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985 - disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Vejamos:
 
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: [...] IV – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
 
Em caso de ofensa ao patrimônio cultural, a competência constitucional do Parquet encontra fundamento na Constituição Federal vigente:
 
Art. 129, [...] III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
A doutrina considera o folclore como domínio público, devido a características de anonimato[15]. Sustenta-se, neste trabalho, que a manifestação atinge o status de Patrimônio Cultural dependo da referibilidade já examinada.
 
Para Antônio Chaves (1995, p. 139), oconceito de folclore é da linguagem comum, e não do direito. José de Oliveira Ascensão (1997, p. 54) defende o espírito coletivo:
 
Há certas manifestações culturais que podem ser referidas ao espírito coletivo. Baseiam-se necessariamente em atos individuais de criação, pois só o espírito de cada homem cria, mas esses contributos dissolvem-se no conjunto de modo inextrincável. Não podem ser isoladas para ser atribuídas individualmente, nem permitir a afirmação de autoria sobre a criação coletiva.
 
Na ótica de Kanwal Puri, citado por José de Oliveira Ascensão (1997, p. 54), o folclore tem características fundamentais: a) é anônimo, b) obedece a modelos e regras determinadas, fundadas na tradição, c) são criações coletivas e dizem respeito a um grupo limitado que as perpetua e reconhece, d) tem caráter popular e é transmitido oralmente.
 
As manifestações folclóricas não são, sob ótica puramente formalista, consideradas como Patrimônio Cultural. Contudo, é muito difícil uma manifestação folclórica não guardar a referibilidade exigida pela Constituição, salvo se originária de estrangeirismos ou portar elementos que maculem os direitos humanos ou quaisquer direitos fundamentais.
 
Demais disso, o folclore não se enquadra na categoria patrimônio público, pois não pertence à esfera patrimonial da administração pública.    
       
Excetua-se, desses postulados, a hipótese de o folclore ser associado ao patrimônio genético, nos moldes da Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001. Esse regramento determina, expressamente, que o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético é Patrimônio Cultural Brasileiro.
 
No mesmo diapasão, sustenta-se a idéia segundo a qual obras artísticas, literárias e científicas em domínio público não pertencem, formalmente, ao Patrimônio Cultural. Não é qualquer expressão da cultura que é portadora de referência à identidade, ação e memória de nosso país.
 
Existem duas competências distintas do Ministério Público (Lei 7.347/85, art. 1º, IV, e Constituição Federal, art. 129, III). A primeira diz respeito à legitimidade ativa ad causam para defender os bens de valor artístico (domínio público), como direitos difusos, e a segunda, competência constitucional, relacionada à defesa do patrimônio cultural.
Depreende-se, desse raciocínio, que o domínio público não é patrimônio público em sua acepção formal, pois não é pertencente aos entes da administração pública direta e indireta[16]. Além do fato da ausência de titular de direito patrimonial, a titularidade do Estado no âmbito do domínio público é apenas para defender a dimensão moral do direito autoral em juízo.
 
A ressalva que se faz sobre esses paralelos jurídicos é que a análise, ora apresentada, não se presta a ser absoluta. Primeiro, devido à natureza e os conceitos dos elementos relacionados com a cultura, que jamais devem ser fechados ou excludentes. E, ainda, pela necessidade de comunicação desses paralelos com outras ciências. Portanto, as delimitações sugeridas são apenas norte para apreciação jurídico-científica.
 
As transformações geradas pelos avanços da tecnologia afrontam um dos mais importantes princípios da propriedade intelectual: o equilíbrio entre os interesses público e privado (ROVER, 2007). O acesso à informação e as facilidades da era digital são fatores que propiciam a utilização indiscriminada de bens de natureza material e imaterial protegidos pelo direito.
 
Conforme Letícia Borges da Silva (2005, p. 375), os conhecimentos tradicionais têm outra natureza: são criações do intelecto coletivo e cultural de um povo. Constituem-se, portanto, tais conhecimentos, quando portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileiracomo Patrimônio Cultural Brasileiro.
 
A Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, determina, objetivamente, que o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético integra o Patrimônio Cultural Brasileiro:
 
Art. 8o, § 2o  O conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de que trata esta Medida Provisória integra o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto de cadastro, conforme dispuser o Conselho de Gestão ou legislação específica.
O pleno exercício dos direitos culturais é indispensável para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades na preservação de seus conhecimentos tradicionais. Esse princípio inspira política pública determinante, na forma do Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que trata das atividades para o desenvolvimento das comunidades tradicionais.
 
Art. 1º  As ações e atividades voltadas para o alcance dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais deverão ocorrer de forma intersetorial, integrada, coordenada, sistemática e observar os seguintes princípios: [...] XIV - a preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas comunitárias, a memória cultural e a identidade racial e étnica.
[...]
 
Art. 3o  São objetivos específicos da PNPCT: [...] XV - reconhecer, proteger e promover os direitos dos povos e comunidades tradicionais sobre os seus conhecimentos, práticas e usos tradicionais;
 
O desrespeito às regras da propriedade intelectual constitui o ilícito da concorrência desleal e a outorga, institucional e simbólica, da dominação econômica em desfavor dos titulares das manifestações de cunho cultural, histórico, artístico e científico.
 
A apropriação renitente de elementos pertencentes ao Patrimônio Cultural Brasileiro pela indústria internacional é afronta aos princípios constitucionais mais caros. A aplicação industrial ilegal dos conhecimentos tradicionais, a biopirataria, a pirataria, as confrações de natureza autoral, o uso indevido de marcas e outras distorções da mesma espécie ferem a soberania nacional e arranham o sentimento de pertença dos brasileiros.
 
Caso de repercussão internacional no setor da propriedade intelectual é o registro equivocado da marca “rapadura” pela empresa alemã Rapunzel Naturkost AG, sediada na cidade de Legnau, in Allgäu. A rapadura é doce tipicamente nordestino, subproduto da cana de açúcar, produzido no Brasil desde os tempos do Império. O doce foi e é item de subsistência de milhares de famílias pobres do nordeste que o produzem de forma artesanal.
 
Devido à sua importância no cenário histórico-cultural nacional e a referibilidade já tratada neste estudo, a rapadura é Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. Sua forte identificação simbólica com a nossa cultura traduz forte sentimento de pertença do povo nordestino, cantado em verso e prosa.
 
Era o alimento que viajava no alforje de Lampião e Maria Bonita quando desbravavam o sertão nordestino. Sendo assim, não pode ser objeto de utilização exclusiva de uma empresa da Alemanha.
 
A empresa depositou a marca nos Estados Unidos e Alemanha, nos órgãos oficiais de registro, respectivamente: United States Patent and Trademark, sob o número 1997779, desde 1996 e Patent und Markenamt, sob o número 1143357, desde 1989. Mesmo não sendo caso típico de violação de direito de autor, como se trata no presente estudo, o exemplo constitui um dos casos concretos mais notórios de lesão ao Patrimônio Cultural Imaterial, ainda sem solução[17].
 
Os singelos elementos da cultura tradicional são objetos de interesse dos conglomerados internacionais para aplicações industriais e uso na indústria do entretenimento. Há uma busca geral pelo exótico, pois a mídia dominante reproduz, em escala industrial, sempre os mesmos símbolos artificiais desprovidos de personalidade, frutos dos escritórios de marketing.
 
O equilíbrio entre a propriedade privada e o interesse público sempre deve nortear as ações institucionais nas questões relacionadas à propriedade intelectual. A titularidade coletiva de bens pertencentes ao Patrimônio Cultural Brasileiro é soberana, devendo sobrepujar-se a qualquer interesse particular.
 
As políticas públicas formuladas para a defesa de bens pertencentes ao Patrimônio Cultural merecem prioridade. A preservação destes bens relaciona-se com a guarda da autonomia, soberania, independência e identidade da nação.
 
As consderações ora expendidas no bojo deste estudo foram fruto de estudo comparado das legislações de regência, doutrina e investigação das nuances dos institutos.
 
Cumpre destacar, inicialmente, que as delimitações jurídicas traçadas no presente trabalho não se prestam a restringir a natureza abrangente dos elementos da cultura, que devem ser apreciados de forma ampliativa e com alguma subjetividade.
 
O direito autoral é ramo específico da ciência jurídica, com regramento constitucional, legislação específica e normas internacionais que regulamentam as formas de utilização das obras artísticas, literárias e científicas.
 
O Patrimônio Cultural é objeto de estudo multidisciplinar, no qual se insere o direito. Sua importância para a identificação dos signos portadores de referência à identidade e cultura brasileiras enseja a existência de normas jurídicas de proteção enquanto patrimônio nacional e, sob a ótica do direito autoral, resguardar determinados grupos portadores de conhecimentos ancestrais.
 
Questão de relevo enfrentada no decorrer desta investigação reside na hipótese de os elementos formadores do patrimônio imaterial brasileiro necessitarem ou não dos procedimentos de registro para serem reconhecidos com tal. Se há, realmente, a formalidade para que determinado elemento integre o rol do patrimônio cultural imaterial.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 216, determina que constituem o patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
 
O parágrafo primeiro do artigo 216 da Carta prescreve que o poder público, com a colaboração do particular, protegerá e promoverá o patrimônio cultural. A norma não traz nenhum vocábulo relacionado com instituição formal. A condição para determinado bem integrar o patrimônio cultural é a referência de que trata o caput. E essa referência não necessita, obrigatoriamente, ser homologada, inscrita ou inventariada para ser legitimamente reconhecida.[18]
 
Os procedimentos administrativos que tratam sobre o registro, inscrição e demais procedimentos de proteção e promoção de bens imateriais pertencentes ao patrimônio cultural objetivam a promoção de políticas públicas, a defesa, valorização e identificação destes bens imateriais visando a perpetuidade da memória e o acesso aos bens culturais.
 
O art. 215 da Constituição Federal em vigor determina que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional. Esses procedimentos administrativos são ferramentas de acesso aos bens culturais e instrumentos de identificação em forma de base de dados para que o conhecimento seja repassado, fidedignamente, para as gerações futuras.
 
Pelas razões apresentadas, defende-se que o Patrimônio Cultural Imaterial, determinado pela Constituição Federal de 1988, existe por si só. Existe porque nele há elementos que guardam a referência prevista no texto da Carta Magna.
 
Justifica-se a necessidade da investigação da autonomia subjetiva da referência cultural enquanto patrimônio imaterial instituído pela norma constitucional como paradigma, visando contrapor este patrimônio cultural mais abrangente com as normas que regem as criações do espírito.
 
Em igual sentido, sustenta-se que obras artísticas, literárias e científicas em domínio público não são consideradas, necessariamente, Patrimônio Cultural. Não é qualquer manifestação da cultura que porta referência à identidade, ação e memória nacionais.
Passada essa etapa, verifica-se a existência de importantes pontos de contato entre o Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro e os Direitos Autorais.
 
Há algum regramento legal, embora rarefeito, que confere a determinadas comunidades o direito coletivo de exclusividade sobre a exploração econômica de seus fazeres ancestrais e do conhecimento tradicional.
 
Embora essa premissa seja válida, há o contraponto que a Constituição Federal em vigor assegura a todos a liberdade de expressão e o exercício livre do trabalho. Ou seja, qualquer pessoa pode se expressar e utilizar elementos de determinada cultura para se expressar, para produzir obras artísticas, por exemplo.
 
Entretanto, os direitos morais e as vantagens econômicas provenientes da utilização das obras pertencem, em regra, tratando-se de conhecimentos tradicionais, ao grupo sucessor destes conhecimentos ancestrais.
 
Os signos e os axiomas representados e ou reproduzidos por via escrita, oral, cinética e outras formas, provenientes do conhecimento tradicional, que sejam meras cópias das expressões culturais de determinado grupo, não podem ser utilizados com exclusividade por terceiros que não participam de determinada comunidade.
 
Os meros plágios que tentam imitar signos e motivos provenientes de saberes ancestrais já existentes, nos quais não se identifica a criação do novo autor, não devem ser reconhecidos como obras protegidas.
 
Sendo assim, com visto acima, a exclusividade individual concedida a uma obra original não pode ser outorgada a uma manifestação que não traz nenhum elemento de criação nova, somente colagens de signos da cultura popular, exemplificativamente, cópias de expressões do conhecimento tradicional. Muito mais quando tais manifestações são consideradas como Patrimônio Cultural imaterial, cuja titularidade é coletiva.
 
O Patrimônio Cultural Imaterial tem vários autores, que foram inventando e reinventando, lendo e relendo, inspirando e expirando a teia dos sentimentos de determinada cultura.
O presente estudo não foi realizado com o objetivo de exaurir o tema. Aos demais ramos das ciências sugerem-se outros olhares e que haja interesse da classe acadêmica na produção de futuros trabalhos.
 
A cultura enquanto ramo de estudo tem espectro multidisciplinar e merece investigações das mais diversas.
 
 
ABRÃO, Eliane Y. Conhecimento, pesquisa, cultura e os direitos autorais, In: ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; WCHOWICZ, Marcos (Coord). Coletânea Direito da Propriedade Intelectual. Curitiba: Juruá, 2. ed, 2007, p.165-182.
 
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  [1]Jargão jurídico – Conjunto de normas e princípios que norteiam situações de direito.
[2] Gravação sonora catalogada de acordo com o Decreto no 4.533 de 19 de dezembro de 2002.
[3] Nas outras modalidades de utilização inclui-se a internet.
[4] Desrespeito aos direitos autorais, ofensa à Lei 9.610;98.
[5] Eficácia da norma jurídica é a propriedade que a faz produzir efeitos concretos e próprios.
[6] Interpretação literal é a ferramenta jurídica de tradução da norma utilizando o texto puro e simples como parâmetro imediato.
[7] Aproveitamento econômico advindo da utilização da propriedade intelectual, nas suas diversas formas.
[8] Direito à autoria, titularidade, origem do conhecimento tradicional, designação de origem, direitos referentes às obras literárias artísticas e científicas e outras aplicações.
[9] A competência legislativa dos municípios para legislar sobre cultura e patrimônio cultural é decorrente da interpretação sistêmica do texto constitucional, art. 24, VII, c/c art. 30, I e II, conforme a grande parte da doutrina especializada. Em função desta posição, muitos municípios expediram legislação própria sobre proteção do patrimônio cultural local. P. ex. São Paulo e Fortaleza.
[10] CF. de 1988, Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IX - educação, cultura, ensino e desporto;
[11] CF. de 1988, Art. 30. Compete aos Municípios: [...] IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
[12] A originalidade não é um requisito objetivo. Trata-se do produto da atividade criativa, que difere o banal do elemento advindo do espírito humano. No caso, a originalidade se encontra na criação advinda do pensamento em detrimento da utilização de signos de outras obras já existentes.
[13] O plágio é uma imitação, cópia ou reprodução de obra literária, artística ou científica na qual um terceiro se intitula falsamente como autor. Para aferir se há ou não plágio em processo judicial, o perito examina se houve intenção do terceiro em apropriar-se, como autor, de determinada obra.
[14] Lei 9.610/98, art. 43.
[15] Ressalve-se que no domínio público dos direitos autorais, na regra geral, perduram os direitos morais. Nesta hipótese, não há anonimato. O anonimato é aplicado ao folclore: autor desconhecido (Lei 9.610/98, art. 45, II).
[16] Na forma da Lei da Ação Popular, Lei 4.717/65, considera-se patrimônio público o conjunto de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, pertencentes aos entes da administração pública direta e indireta.
[17] A OAB-CE cuida do caso desde 2006, em tratativas de ordem administrativa junto ao Itamaraty, Ministério da Cultura e Presidência da República. Estuda, atualmente, alternativa para o ingresso de ações judiciais na Alemanha e Estados Unidos. O assunto foi levantado e é conduzido, na esfera jurídica, pelo autor desse trabalho.
[18] Anota-se, por zelo metodológico, que o tombamento e a desapropriação, que não são objeto deste estudo por serem institutos relacionados com o patrimônio material, devem preceder de processo administrativo formal. Existem legislações de regência nas esferas da federação e as limitações de propriedade devem obedecer aos ritos e procedimentos atinentes ao devido processo legal, ampla defesa e demais direitos fundamentais previstos na Carta Capital.
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